O gótico e um anfibio

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010.
Eles são pais de família, vão à padaria, põem gravata, levam o filho à escola e saem para o expediente. Alguns são até vovôs. Mas não deixam de ser góticos. Com todo capricho que define um grupo urbano marcado pelo sombrio: vestidos de preto na maioria, cultores da noite, com maquiagens dramáticas e um ar melancólico algo irônico, quem sabe dissimulado. A cena gótica, que desde as primeiras importações em 1985 busca afirmar-se no país como subcultura global, típica da dinâmica das grandes cidades, integrou-se à economia de consumo, mas sobrevive sem perder a identidade.

Só na capital paulista estima-se que algo em torno de 6 mil pessoas (as estimativas são falhas e temerárias, dizem os góticos) tomaram para si os sentidos contidos no adjetivo inglês goth, no que ele sugere de vitoriano, sombrio, misterioso, fantasmal, onírico e macabro.

Embora não seja fértil em gírias características, o universo gótico brasileiro tem uma relação por assim dizer "expressionista" com a linguagem. É comum o uso consciente de arcaismos de linguagem ou de um tom premeditadamente pomposo, em sintonia com uma certa atitude teatral no comportamento.

Palavras antigas, citações latinas, saudações arcaicas (como "beijos trevosos", "beijos sangrentos", "saudações terrenas" e "lembranças eternas"), além de construções rococós ("Por meio desta vossa senhoria está convidada..."), povoam mensagens impressas e on-line dos góticos. É nesse contexto que se pode entender a popularidade no meio de expressões como carpe noctem, equivalente soturno para a latina carpe diem (viva o dia, em alta desde o filme Sociedade dos Poetas Mortos, de 1989).

A relação dos góticos com o nome próprio assume também valores para a subcultura. Muitos adotam codinomes imaginários, mas é comum ver o nome de batismo vir acompanhado por sobrenome que remeta a uma música ou cantor de uma banda do gênero. Proliferam, assim, sobrenomes como Bella Morte, Wolf, Manson. Ou prenomes formados por títulos aristocráticos que aludem vagamente ao romantismo vitoriano, como Lord, Marquês ou Lady (o codinome Deusa é a moda do momento).





Espírito de época



Não há óbvia relação desta subcultura com a escola estética do Romantismo do século 18, virada para o 19. Muito menos com os godos da Antiguidade, e é duvidoso que algum gótico se identifique de fato com o espírito renascentista que inspirou catedrais como as francesas Notre-Damme, Chartres e Saint Denis.

"O gótico é uma subcultura formada por quem não alimenta ilusões de que a sociedade seja boa, nem que seja possível estar contra ela. Por isso, cria um espaço em separado em sua vida. É uma visão critica, mas ao mesmo tempo escapista" - diz o ilustrador gaúcho Henrique Antonio Kipper, de 36 anos.

Gótico desde que chegou a São Paulo em 1990, Kipper acredita que a subcultura há muito ultrapassou o limite efêmero que data e enterra as modas passageiras.

"O gótico dos dias de hoje é um ser anfíbio, que sofre a pressão para ingressar na sociedade de consumo quando completa 21 anos. Nem sempre se conciliam essas coisas. Mas há um "núcleo duro" que mantém a integridade de "subcultura", algo que não é movimento com um ideário político, mas tampouco é só a moda da estação" - confirma Kipper, que é casado, pai de um menino de 14 anos.

A caricatura mais frívola costuma povoar o imaginário dark com modelos e ícones que restringem o gótico à cultura de cemitérios e crucifixos e a jovens frívolos e preocupados com a aparência. O chamado "núcleo duro" do gótico nacional, no entanto, viu muitos adolescentes renovarem as gerações góticas a cada cinco anos e, do entusiasmo de primeira hora, desistirem da subcultura quando ingressam pra valer no mercado de trabalho. À sombra desse público rotativo, muitos fizeram do comportamento gótico sua razão de ser e vivem a vida "anfíbia". Só em São Paulo, estima-se que mil pessoas formem esse "núcleo duro" do gótico de raiz. Ao contrário de góticos de outros países, o brasileiro seria anfíbio por alternativa de mercado, desconfia o publicitário André Scarabotto, o Lord A, de 28 anos.

"No exterior já há um mercado melhor definido, em que os góticos podem ser profissionais dentro da própria subcultura. Trabalham em lojas de roupas, produção de clipes e revistas, estúdios de gravação para bandas do gênero".

No Brasil, o gótico teria se tornado mais anfíbio por, em resumo, não poder ser gótico o tempo inteiro. Lord A diz que convive com todo tipo de profissional gótico, como bancários, engenheiros, advogados e médicos.

"O gótico brasileiro é um descontente com esse mundo sintético, desumanizado, onde a sociedade deixa a gente se sentir mal até quando você não se encaixa em rótulos. Ele reage a isso, cria uma vida à parte, mas, como não tem jeito, vai trabalhar no dia seguinte".





Glocal



Surgido na Inglaterra, exportado para a Europa continental, depois para os EUA e de lá para o Brasil pós-ditadura militar, o gótico assumiu traços locais, apesar do internacionalismo ser uma de suas tônicas (um gótico búlgaro lembrará muito um brasileiro ou inglês). Kipeer acredita que uma característica lusa muito forte, a sensação de nostalgia, encontrou forte acolhida no Brasil. "Mesmo antenados e bem informados, muitos por aqui tendem a curtir mais as fases antigas do gótico do que as novidades. A sensação de que houve um paraíso perdido, uma necessidade de volta ao passado, está menos contida nas tendências góticas que imaginam um futuro tecnológico decadente" - comenta Kipper.

Mas não há definições claras sobre o estado de ser de um gótico. Haveria menos um sistema de regras para caracterizar alguém como gótico, do que um de tabus. Os integrantes da subcultura gótica em muitos casos relegam, na boa, temas considerados recorrentes, como a bruxaria, o vampirismo e o culto a mortos-vivos.

A sensação de desajuste, o apelo à vida subterrânea, parecem ser tão definidores do gótico como o apreço por símbolos recorrentes (lua, noite, inverno, outono, etc.), por decadência, pelo expressionismo alemão, pelo terrir de si mesmo e o gosto por tudo o que lembre uma obscuridade otimista. Poucos grupos parecem buscar tanto o guarda-chuva de um rótulo para reafirmar a agonia de ser enclausurado por ele. (Colaborou LCPJ)





Palavras e expressões góticas



Mexerica

É algo "típicamente gótico". Pode ter a conotação de "exagerar" ou ser "afetado" no comportamento, linguajar ou visual gótico. Gíria já antiga na cena gótica brasileira, usada tanto de forma carinhosa como pejorativa. Pode querer dizer que algo é "estereotipadamente gótico, tanto para o bem como para o mal". Considera-se que todo gótico tem seu momento mais "mexericoso".



Wannabe

Equivalente a "querer ser" em inglês. Significa alguém novo no meio, que ainda está aprendendo ou ainda não sabe muito. Dependendo da pessoa que usa o termo, pode ser usado no sentido positivo ou, mais comum, como crítica discriminatória.



Thru

Para os veteranos, é o nome de quem já era do meio antes da moçada mais nova virar gótica. Expressão oriunda do universo dos metaleiros. O thru seria o "mais verdadeiro", "mais real".



Carpe Noctem

Um trocadilho. "Aproveite a noite", variação gótica para "carpe diem", antigo lema latino hedonista, propagado no país depois do filme Sociedade dos Poetas Mortos.



Vampyro

A palavra "vampiro" é grafada com y propositalmente, para distinguir seus membros do personagem cinematográfico e folclórico. A subcultura vampyrica teria a pretensão confessa de compartilhar pressupostos do existencialismo.



Catar uva

Nomeia um tipo de dança chamado "etereo", num estilo que permite passos e gestual que lembram vagamente o movimento de catar uvas no ar. Usada com ironia, a palavra pode significar que alguém desatento repentinamente "pescou" idéias no ar.



Limpar teia de aranha

Modo de mover os braços quando se dança, como se afastasse teias no ar. Ironicamente empregado no sentido de "desatualizado".



Antes de sair à noite, não esqueça os óculos escuros

Baladeiro, o gótico se diverte por toda a noite e deve estar prevenido para que o sol não lhe doa a vista, ao sair dos encontros góticos pela manhã. A frase também alude a um dos fetiches das bandas do gênero, o vocalista de óculos escuros.





Sobrenatural de Almeida



Tradição gótica se filia à literatura romântica com mais facilidade do que com indevido parentesco com os godos antigos. É unânime entre os membros do grupo que o termo "gótico" surgiu a posteriori, depois que as primeiras manifestações da subcultura começaram a tomar forma, nos anos 70 e 80. Com significados particulares em diferentes períodos históricos, a apropriação do termo pela geração dos anos 80 encontrou eco no ideário difundido pelos romances e dramas britânicos publicados entre 1764 e 1820, também conhecidos como Gothic Novel, por seu caráter fantástico.

Remetem a uma atitude espiritual trazida pelo Romantismo entre a metade do século 18 e início do 19 que iria solidificar uma postura em defesa da liberdade de sentir e se expressar, condenando o absolutismo político, religioso, social e estético. Ambientado inicialmente na Alemanha e Inglaterra, o movimento romântico vai espalhar pelo mundo uma nova postura, pautada no pessimismo, na embriaguez e fuga da realidade, e, fortemente, no elemento fantástico, principal referência para a subcultura gótica e suas variantes mais recentes.

Para Cid Vale Ferreira, de 27 anos, autor de Voivode - Estudos Sobre os Vampiros e editor do site Carcasse, referência em ciberpesquisa sobre essas subculturas, o elemento sobrenatural foi fator importante na criação dos romances e dramas que tinham na superstição medieval e no humanismo trágico suas principais fontes.

"Na própria Inglaterra, uma das mais populares correntes do romance gótico baseava-se no chamado 'sobrenatural explicado' (à Ann Radcliff, com 'assombrações' forjadas ou apenas aparentes), que, levemente reformulado, daria origem ao 'romance histórico' do século 19. Na França, a ambientação de tramas tipicamente góticas no submundo urbano culminou no 'romance social' à Eugène Sue. No Brasil, temos no byronismo uma infinidade de obras de teor fatalista e macabro sem qualquer alusão ao sobrenatural".

O elemento fantástico, que inspirou os contos do americano Edgar Alan Poe ou o Frankenstein, de Mary Shelley, estaria presente na simbologia da subcultura gótica, comumente associada à noite, às práticas místicas, ao culto à morte ou a seres de natureza ficcional soturnos, como vampiros e bruxas, sem, no entanto, explicar em definitivo seus múltiplos aspectos.

"Muito do que podemos adjetivar de "gótico" tem no gótico inglês setecentista apenas seu impulso inicial. A estética em si, com seus peculiares conceitos de beleza e sublimidade, sobrevive com ou sem o elemento sobrenatural, com uma incrível capacidade de se adaptar aos tempos e culturas em que se inscreve."



Texto original de Kelly Cristina Nogueira

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